Resenha do filme Ninfomaníaca de Lars Von Trier
No volume I de Ninfomaníaca, Lars apresenta a personagem principal e alguns indícios de sua personalidade. A ninfomania é bem escancarada: logo no início do filme Joe começa a contar sua história a Seligman, homem que a resgata em um beco, para a qual se afirma como uma pessoa ruim. Ao contar suas histórias a ele, revela o comportamento compulsivo por sexo e se afirma como ninfomaníaca. Nunca como doente, viciada ou compulsiva.
Eu costumava acreditar que quem é dependente de algo ou alguma substância pode ser dependente de qualquer coisa. No filme "Borderline", de Lyne Charlebois, e no "Lie with me/Deite comigo" de Clement Virgo, a questão da compulsão por sexo é abafada por dependência química e emocional. As personagens são dependentes do sexo, mas não só porque o cerne do vício está no prazer sexual: são personagens carentes, emocionalmente fragilizadas e dependentes. Em ninfo, Joe, mesmo com uma relação conturbada com sua mãe e a perda trágica do pai, não sente essa carência. O sexo para ela é um desafio, é uma conquista, uma caça na qual ela é presa e predador. Joe é viciada em sexo pelo prazer em si, não importando quais meios ou decisões deverá tomar para obtê-lo.
Ninfomaníaca, ao meu ver, não é um filme pornográfico ou erótico, como muito se disse por aí. Algumas cenas realmente são erotizadas e capazes de dilatar as pupilas entre otras cositas más, mas ao todo, o filme trata de um comportamento limítrofe, de recalques (não no mesmo sentido empregado pela filosofa contemporânea), preconceitos, moralismos, machismo, hipocrisia e sofrimento. Principalmente sofrimento.
Ao explorar diversos medos, tabus, perversidades, condutas morais e éticas, o filme quase se apresenta como uma cartilha do quê não fazer, sob o ponto de vista da sociedade calcada em preceitos (ou preconceitos?) éticos, morais e religiosos que conhecemos. O falso moralismo recorrente na obra de Lars aparece mais evidente e chocante na segunda parte. Assim como em seus outros filmes, o diretor faz esse jogo de vítima e agressor com seus personagens. A benevolência e compreensão de Seligman é do mesmo tamanho da que os habitantes de Dogville sentiam por Grace. A figura de Seligman aqui é a de um salvador, um herói velho, nerd e compreensivo que tenta sempre amenizar as culpas que sua "amiga" carrega. Inicialmente.
Focando meu texto no volume II, é nessa segunda parte que Seligman compartilha um pouco mais de sua vida e justifica a ausência de sentimentos e sensações perante as histórias sexuais: o solitário amigo é virgem e se considera assexuado. É nesse momento em que o diálogo repleto de lembranças dissonantes torna-se ainda mais sórdido, uma vez que a agonia, o desprezo e as perversões vem à tona. O volume I também apresenta tais características, mas com uma aura sedutora e excitante ao público espectador. Já na segunda parte, a sensualidade de Joe/Charlotte é mascarada e já não se vê aquele furor em seus olhos e sim um desejo doentio.
Com metáforas menos explícitas e cenas bastante fortes, esse segundo volume traz questões polêmicas como práticas sadomasoquistas, homoafetividade/ homossexualidade, pedofilia, chantagem emocional, violência e questões ligadas à religiosidade e fé. Algumas cenas trouxeram simbolismos que mexeram demais comigo, apresentando uma espécie de terror psicológico e outras uma agonia fora do normal. A cena do parto, especificamente, traz um apelo para questões ligadas a fé, não sei se na tentativa de chocar ainda mais o público ou na forma de um apelo emocional, tendo em vista que bebês são normalmente tidos como seres angelicais, divinos.
Ainda assim, mesmo com 40 chibatadas de aflição, o diretor finaliza seu longa sob uma perspectiva humanizada da ninfomania ou compulsão por sexo, como preferir. Joe diz sua compaixão pelo homem que reprime seus desejos sexuais amorais e decide mudar sua postura diante de seu problema. O final... bom, final é feito à própria maneira do diretor, repleto de críticas a falsos moralismos, hipocrisia, fuga e esquecimento. Para o dinamarquês, o mal pode e deve ser punido e aquele que age com generosidade e não tem o devido reconhecimento de sua ação merece agir com truculência. Nessa onda do aqui se faz, aqui se paga, Joe aperta o gatilho e mata seu passado.